sábado, março 17, 2018

O primeiro piquenique da República


Carte de la L'isle Grande et coste de Brezil aux environs - Jacques Nicolas Bellin, ano 1764.

Até hoje repercutem as extravagâncias monarquistas do "último baile do Império", na Ilha Fiscal, mas os novos republicanos não ficaram atrás em mordomias, escândalos e bacanais. E começaram se dando mal.

O  fato que vamos abordar aconteceu em 1906. Os republicanos, talvez entediados com os eventos palacianos e protocolares, tiveram a idéia brilhante de fazer um "piquenique" privativo, reunindo grande parte do alto escalão do governo.

O local escolhido foi a Ilha Grande, próximo à Angra dos Reis, RJ, onde embarcações da Marinha proporcionariam privacidade e aposentos adequados à enorme comitiva de figuras importantes. Para despistar a imprensa, ficou combinado que o encouraçado Aquidabã sairia do Rio de Janeiro numa sexta-feira, ostensivamente levando apenas oficiais da Marinha com a suposta missão de "realizar exercícios marítimos de telegrafia sem fio" durante o final de semana.

Caravana feminina

À noite, na Ilha Grande, se juntariam ao Aquidabã os cruzadores Barroso e Tamandaré, levando vários ministros brasileiros, a alta hierarquia militar, diplomatas estrangeiros e muitos convidados emergentes da alta sociedade republicana, longe dos olhos do público e da imprensa.

O filho do Ministro da Marinha - boêmio freqüentador da Lapa, Mourisco, Rua Alice e dos velhos casarões da Tijuca - ficou incumbido de arregimentar as dezenas de companhias femininas necessárias. Naquela semana, muitos cabarés e prostíbulos cariocas chegaram a fechar por falta de polacas, francesas, mulatas e caboclinhas.

Para não chamarem a atenção, as mulheres foram levadas a cavalo, carruagem e trem "maria-fumaça" até o cais de Mangaratiba, onde embarcaram em chalanas (um tipo de embarcação pequena) com destino à Ilha Grande. Lá, à meia-noite, se juntariam aos convivas do Aquidabã e dos demais navios para duas noites de muita farra.

Festa no mar

Tripulantes do Aquidabã contaram, na época, que desde que zarpara da Praça XV, a oficialidade estava em festa: o filho do ministro, guarda-marinha Mário Noronha, e seu primo, capitão-tenente Henrique Noronha, comandavam a farra regada a vinhos, licores, leitões, frangos, frutas, música, etc. A nave era só animação, gargalhada e cantoria.

Quando estavam chegando ao ponto de encontro na costa da Ilha Grande, na Ponta Leste, entrada da Baía de Angra dos Reis, pouco antes das 23h de 21/01/1906, um violento estrondo estremeceu o Aquidabã; o navio tinha batido contra uma laje submersa e explodiu quando a água invadiu as caldeiras, afundando imediatamente.

A menos de cem metros, os convidados ilustres a bordo dos cruzadores assistiram horrorizados à morte de 212 homens. Marinheiros e pescadores da Ilha Grande ajudaram a resgatar 98 tripulantes com vida. O ministro da Marinha, Almte. Júlio Noronha, impotente e desesperado, viu o filho e o sobrinho voarem despedaçados na enorme bola de fogo que partiu o encouraçado em dois.

Abafando o escândalo

Oficialmente, o governo montou a versão que achou plausível: alegou "desconhecer" a causa da explosão e justificou a reunião de tantas e tão importantes autoridades num fim de semana ao mar como uma "vistoria para montar um arsenal em Jacuecanga" (localidade próxima de Angra dos Reis, RJ).

Oficiais sobreviventes do Aquidabã relataram que no momento do choque o encouraçado era pilotado irregularmente pelo filho do ministro - embriagado e sem habilitação. O povo, na época, comentou à boca-miúda que o naufrágio fora maldição da Monarquia, em vingança pelas críticas sensacionalistas ao baile da Ilha Fiscal.

Abandonadas à própria sorte e sem terem como voltar ao Rio, muitas mulheres arregimentadas terminaram se fixando em Angra dos Reis, Barra Mansa e Mangaratiba, desfalcando gravemente a boemia carioca de suas mais afamadas prostitutas. E o Aquidabã tornou-se uma das maiores pedras no sapato da história republicana.

(agradecemos aos moradores antigos da Ilha Grande pelos depoimentos, e a Elias Lins de Mello, autor do livro "Almanaque Ecológico da Ilha Grande")

Texto de Celso Serqueira

2 comentários:

Prof. JC disse...

Sensacional! Se a história for contada assim qualquer aluno vai amar aprendê-la. Parabéns!

Adinalzir disse...

Muito obrigado pela visita, meu caro amigo!
Seus comentários serão sempre muito bem vindos por aqui.
Grande abraço!